segunda-feira, 8 de maio de 2006

Cinzas e pó

Acordei de rompante, um som estridente tremeu-me os ossos de dentro para fora, com tanta força que quase caí da cama. Neste limiar do acordar não me lembro bem de quem sou, se a juventude perdida de outrora se a inquietude reaccionária de amanhã. Todos os dias por um processo que não desvendo me posiciono perante a vida, como se de um retrocesso ao ponto de partida se tratasse. Todos os dias a mesma dúvida naquele lusco-fusco de tempo, em que o mundo poderá estar outra vez como antes à espera lá fora. Mas não está. O sol desapareceu dos céus assim como toda a côr e vida. Respiramos através de aparelhos que se confundem agora com os nossos corpos, que são inerentemente orgãos humanos, desprovidos de vida orgânica mas contudo bafejados da nossa esperança e dependência. A pouca radiação existente na superfície juntamente com os químicos e as tentativas falhadas de adaptação da natureza roubam-me as cores do meu vestido. Já não me recordo bem do que era o côr-de-rosa, mas lembro-me da palavra e lembro-me do significado emocional que tinha para mim. A côr em si fugiu-me no entanto, por entre os dedos, ao longo dos anos, ao longo deste tempo maldito em que nos tentamos lembrar de nós, mas estamos descalços a correr atrás de uma memória escorregadia. Não sei para onde vamos, nem sei se vamos continuar a ser o que somos hoje e o pouco que conseguimos ser ontem... Sei no entanto que o meu vestido continua a ser côr-de-rosa, contrariamente ao que os meus olhos me dizem. E se hoje vejo os meus filhos lá fora nas cinzas e no pó, esquecidos do Homem, isso dá-me esperança que eventualmente acabemos por nos adaptar. Eu no entanto morrerei num tempo longínquo, longe deste, onde os dias eram mais doces e as noites mais serenas. Maldito acordar... Malditos segundos em que acordo presa ao passado por uma cola viscosa que não me quer largar...

Pintura: Kathie Olivas, "Gas Mask Girl" da série Misery Children, Óleo em tela 12.7x25.4cm

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